domingo, 9 de fevereiro de 2014

O herói nacional e seus bordados

A revolta da chibata eclodiu no dia 22 de novembro de 1910, representava a insatisfação dos marinheiros contra o uso da chibata e de outras práticas violentas dentro da Marinha brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho o cenário de pânico devia-se aos grandes encouraçados, que faziam parte do programa de renovação naval iniciado em 1906. Estes navios eram os melhores do mundo, exibindo um total de 84 canhões, ainda juntaram-se a estes o scout Bahia e o encouraçado Deodoro, juntos representavam um poder de fogo imenso, o que gerou medo imediato na então capital do país. Diante dessa situação os moradores da orla marítima entre a Praça 15 de Novembro e Botafogo fugiram, os pobres para os subúrbios e os ricos para Petrópolis.
Os encouraçados meses antes foram motivos de orgulho nacional, pois o país tinha as mais poderosas belonaves do mundo.  Agora, com as manobras e movimentações feitas pelos navios dentro da baía, instaurou-se um verdadeiro espetáculo, mas aumentou o medo da população. Os comandantes e a população ficavam impressionados com a belíssima correção da evolução do navio, apontavam no comando João Cândido como responsável pelo majestoso evoluir dos encouraçados. João Cândido Felisberto entrou na Marinha em 1895, com 15 anos. De acordo Carvalho era semi-analfabeto, lia mas não escrevia. Durante sua trajetória na Marinha foi promovido a cabo, porém devido a mau comportamento havia sido rebaixado a marinheiro de primeira classe. “Envolvera-se em lutas corporais com colegas e espancara outros. Em 1909, dera uma chibatada em um grumete, que em represália, o esfaqueara nas costas.” (CARVALHO,1995: p.70)
Em uma visita a São João del. Rei, José Murilo de Carvalho ficou impressionado com duas toalhas bordadas conservada no Museu de Arte Regional da cidade, que teriam sido feitas por João Cândido. Diante da surpresa procurou investigar o fato, a tolha fora doada por Antônio Manuel de Souza Guerra, este com 92 anos ainda possuía uma boa memória, o mesmo lhe confirmou a história dos bordados, havia sido praça do 51º Batalhão de Caçadores (BC) de São João del. Rei. Na época da Revolta dos Marinheiros, o batalhão foi chamado para auxiliar no policiamento da capital, devido a insegurança do governo em ralação às tropas sediadas no Rio de janeiro.  O batalhão foi encarregado da guarda dos presos da revolta, encarcerados na Ilha das Cobras, neste episódio Antônio Guerra conheceu João Cândido com quem teria feito amizade e combinado de levar jornais todos os dias, pois o preso se queixava da falta destes.
O que chamou a atenção de Antônio Guerra foi o fato do temido líder da revolta passar o tempo todo bordando, este presenteou o sargento com duas toalhas bordadas, uma com o tema O Adeus do Marujo, e a outra com a inscrição “Amôr”. Estes bordados estão no Museu de Arte regional. Então, José Murilo procurou investigar quando as toalhas foram bordadas, acredita que foi por volta de 24 de dezembro de 1910 e 18 de abril de 1911. João Cândido foi preso com mais 17 companheiros e encarcerados na solitária da Ilha das Cobras, entretanto, a cela tinha sido lavada com água e cal. Os prisioneiros começaram a sufocar devido a falta de ventilação, a poeira da cal, o calor e a sede. Os gritos destes chamaram a atenção do guarda, que  não tinha as chaves. Por alguma razão que até o hoje não se sabe o comandante do Batalhão Naval, Marques da Rocha, levou consigo as chaves da sela e foi passar a noite de natal no Clube Naval. Quando este chegou à ilha no dia seguinte e abriram a cela, apenas dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. João Cândido permaneceu preso, em seu depoimento registrado por Edmar Moral percebe-se que estava atormentado, pois ouvia gemidos de seus companheiros mortos, isso, quando não os via em agonia. No dia 18 de abril de 1911 foi removido pra o Hospital Nacional de Alienados, na Urca, Carvalho acredita que os bordados foram feitos depois da morte dos companheiros e antes da sua remoção para o Hospital, como uma forma de autoterapia.


Os bordados:


 O adeus do Marujo - foi feito em uma espécie de toalha de rosto. Na parte de cima, do lado esquerdo, estão bordadas as letras JCF, as iniciais de João Cândido Felisberto. No centro, em cima, o título O adeus do Marujo. À direita a palavra ‘Ordem’. No centro da toalha, duas mãos bordadas se cumprimentam sobre uma âncora e dois ramos que assemelham a ser de café e tabaco. Uma das mangas é branca e tem no pulso botões e galões de almirante, a outra é de simples marinheiro.
Abaixo da âncora, o nome F. D. Martins, uma possível referência a Francisco Dias Martins, colega de João Cândido e comandante rebelde do navio Bahia, tido como um das cabeças da “Revolta da Chibata”. Embaixo, do lado esquerdo, a palavra ‘Liberdade’, do lado direito a data ‘XXII de novembro de MCMX’, o “dia D” da revolta.
 

O segundo bordado Amor - é outra toalha de rosto, o desenho está na horizontal. No alto estão duas pombas segurando, pelo bico, uma faixa que traz a escrito ‘Amôr’ (sic). Abaixo, há um coração atravessado por uma espada, de onde jorram gotas de sangue. Dos lados do coração existem flores, algumas borboletas e um beija-flor. Não há nomes e nem datas.
Os bordados mostram que o coração de João Cândido sangrava talvez pela perda do amigo Dias Martins, em O Adeus de Marujo, ou sangrava por Amor, pela perda de uma paixão oculta. Portanto, para José Murilo de Carvalho, “os que se preocupam em construir o mito de João Cândido como herói de uma classe ou de uma raça, como o líder determinado em inconteste da revolta dos marujos, as revelações dos bordados podem ser perturbadoras. Para os que preferem valorizar os aspectos humanos dos personagens históricos, para os que respeitam mais o herói quando mais humanos parecem, os bordados são uma contribuição preciosa para a biografia de João Cândido.”


CHARGES: 


Charge publicada em 1910 no jornal “O Malho”. Eram constantes as criticas da imprensa à Revolta da Chibata (1910).  Entendendo a charge: A Revolta da Chibata foi um importante movimento social ocorrido, no início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Começou no dia 22 de novembro de 1910. Neste período, os marinheiros brasileiros eram punidos com castigos físicos. As faltas graves eram punidas com 25 chibatadas (chicotadas). Esta situação gerou uma intensa revolta entre os marinheiros.  O estopim da revolta ocorreu quando o marinheiro Marcelino Rodrigues foi castigado com 250 chibatadas, por ter ferido um colega da Marinha, dentro do encouraçado Minas Gerais. O navio de guerra estava indo para o Rio de Janeiro e a punição, que ocorreu na presença dos outros marinheiros, desencadeou a revolta.  O motim se agravou e os revoltosos chegaram a matar o comandante do navio e mais três oficiais. Já na Baia da Guanabara, os revoltosos conseguiram o apoio dos marinheiros do encouraçado São Paulo. O clima ficou tenso e perigoso. O líder da revolta, João Cândido (conhecido como o Almirante Negro), redigiu a carta reivindicando o fim dos castigos físicos, melhorias na alimentação e anistia para todos que participaram da revolta. Caso não fossem cumpridas as reivindicações, os revoltosos ameaçavam bombardear a cidade do Rio de Janeiro (então capital do Brasil).
    Diante da grave situação, o presidente Hermes da Fonseca resolveu aceitar o ultimato dos revoltosos. Porém, após os marinheiros terem entregues as armas e embarcações, o presidente solicitou a expulsão de alguns revoltosos. A insatisfação retornou e, no começo de dezembro, os marinheiros fizeram outra revolta na Ilha das Cobras. Esta segunda revolta foi fortemente reprimida pelo governo, sendo que vários marinheiros foram presos em celas subterrâneas da Fortaleza da Ilha das Cobras. Neste local, onde as condições de vida eram desumanas, alguns prisioneiros faleceram. Outros revoltosos presos foram enviados para a Amazônia, onde deveriam prestar trabalhos forçados na produção de borracha.  O líder da revolta João Cândido foi expulso da Marinha e internado como louco no Hospital de Alienados. No ano de 1912, foi absolvido das acusações junto com outros marinheiros que participaram da revolta.
    Conclusão: podemos considerar a Revolta da Chibata como mais uma manifestação de insatisfação ocorrida no início da República. Embora pretendessem implantar um sistema político-econômico moderno no país, os republicanos trataram os problemas sociais como “casos de polícia”. Não havia negociação ou busca de soluções com entendimento. O governo quase sempre usou a força das armas para colocar fim às revoltas, greves e outras manifestações populares.




Influenciado pela “política” e pela “burguesia”, o marechal Hermes da Fonseca assina a anistia, deixando de lado a “pátria” e o “Zé Povo”. Charge de oposição à Revolta da Chibata publicada em 1910 no jornal “O Malho”.
 Entendendo a charge: Para se ter ideia da violência, nenhum oficial a bordo, do mais graduado, ao mais simples, ficou vivo. Foram todos mortos e colocados em câmara-ardente. Depois, os marinheiros, em radiogramas enviados à terra exigiam além da eliminação da chibata, também a anistia geral pelos crimes cometidos. Exigiam mais - pasmem! - a presença, a bordo, do próprio presidente da República, para completar as negociações, ameaçando destruir a cidade, se não fossem atendidos em seus desejos.
    A situação era tensa. Com o poder de fogo que tinham, os rebelados podiam, de fato, destruir qualquer alvo à sua volta, dentro da baía da Guanabara. Uma reação pelas forças de terra não ajudaria muito, na medida em que muitas vidas seriam perdidas, além do que estaríamos destruindo o melhor do nosso patrimônio naval. O deputado José Carlos de Carvalho, oficial da Marinha, com autorização do Congresso, vai a bordo e constata a gravidade da situação. De lá traz para a terra o último marinheiro chicoteado, que foi estopim da revolta, deixando-o em estado grave num hospital. No depoimento do próprio deputado, "...as costas desse marinheiro assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada".
    Era o dia 25 de novembro de 1910. No palácio do Governo, reúnem-se o Presidente, os ministros e gente experiente da política, analisando a situação. Foi o conselheiro Rodrigues Alves que, perguntado, deu a palavra final. Se não havia outro caminho, que então se concedesse a anistia, não porque a merecessem, mas para não mergulhar o país em tragédia ainda maior. O Congresso, a contragosto, e sob protestos de muitos, votou favoravelmente. Ao cair da tarde, o Presidente assinou a anistia, coadjuvado pelo ministro da Marinha, pelo chefe de Polícia e pelo deputado José Carlos de Carvalho.
    Ainda nesse dia, a anistia foi aceita a bordo, contrariando a muitos, pois o objetivo central, que era a eliminação da chibata, não havia sido atingido. Mesmo assim, uma mensagem enviada ao oficial da Marinha e deputado José Carlos de Carvalho, transmitia a concordância, anunciava a entrega da esquadra e fazia uma ameaça: "Entraremos amanhã ao meio-dia. Agradecemos os seus bons ofícios em favor da nossa causa. Se houver qualquer falsidade, o senhor sofrerá as consequências. Estamos dispostos a vender caro as nossas vidas - Os revoltosos."
    Passaram-se poucos dias e nova rebelião estoura, pela mesma razão, mas esta de menores proporções, envolvendo pessoal de base na ilha das Cobras e mais os marinheiros de um vaso de guerra. Calcularam mal, os marinheiros, os efeitos de seu movimento, pois desta vez, não envolvendo a população da cidade, o Governo sentiu-se seguro para ordenar o bombardeio contra a ilha, morrendo quase todos, dentre os seiscentos revoltosos.
A repressão severa
    Para o Governo, esta nova revolta resultou em lucro. Alarmado com a reincidência e com o temor de que a situação saísse do controle, o Congresso não teve dúvidas em aprovar o Estado de Sítio. A trágica ironia era que os mesmos que antes defendiam a anistia, incluindo Rui Barbosa, agora clamavam pela necessidade de medidas excepcionais para o controle absoluto da situação. E, suprema das ironias, no bombardeio contra ilha das Cobras, foram utilizados os navios Minas Gerais, São Paulo e Deodoro, os mesmos que, dias antes, haviam bombardeado a cidade do Rio, pondo em xeque as instituições.
    Amparadas pela suspensão de parte das garantias constitucionais, as forças policiais foram às ruas fazendo uma operação de varredura, na qual prenderam indiscriminadamente marinheiros e civis, criminosos ou não. Muitos dos marinheiros presos estavam garantidos pela anistia concedida anteriormente, entre eles o chefe da revolta, João Cândido. Entre os civis se achavam desocupados inconsequentes e um punhado de prostitutas.
    O navio cargueiro "Satélite" partiu, então, para a Amazônia, levando, segundo relato de bordo, uma carga de "105 marinheiros, 292 vagabundos (sic), 44 mulheres e 50 praças do Exército". Seguindo instruções, a maior parte dos homens foi entregue à "Comissão Rondon" para trabalhos forçados. Os restantes, inaptos para o serviço, foram simplesmente abandonados na floresta, distantes um do outro, para não haver possibilidade de se reorganizarem. Os prisioneiros que ficaram no Rio de Janeiro foram, posteriormente, encerrados em uma cela solitária no presídio da ilha das Cobras, sendo que apenas dois sobreviveram, um deles, o próprio João Cândido que, mais tarde, fez a narrativa de toda a tragédia.
      
 
Vídeo:


Exercícios:  Clique Aqui!

Referência Bibliográfica:


  • CARVALHO, J.M.de. Os bordados de João Cândido. In: João Cândido Embroideries. História, Ciências e Saúde. – Manguinhos, II (2), 68-84 Jul.Oct. 1996.


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